3 de novembro de 2009

Guimarães Rosa | conto

Olá crianças!

Como eu prometi, lá vai um continho tirado do livro Primeiras Estórias (com E mesmo, da grafia original). Recomento ir neste site e baixar para lê-lo todo, pois ele é importante e também pedido nos vestibulares.

A menina de lá


Sua casa ficava para trás da serra do Mim, quase no meio de um brejo de águia limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhlnhlnha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes.Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia. - "Ninguém entende muita coisa que ela fala.. ." dizia o pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palairas, pois só em raro ela perguntava, por exemplo: - "Ele xurugou?" - e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia. Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado dosentído. Com riso imprevisto: - "Tatu não vê a lua.. ." - ela falasse.


Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só a pura vida.Em geral, porém Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios.Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma. Botavam para ela a comida, ela continuava sentada, o prato de folha no colo, comia logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse mais gostoso e atraente, e ia consumindo depois o resto, feijão, angu, o arroz, abóbora, com artística lentidão. De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente. - "Nhinhinha, que é que você está fazendo?" -perguntava-se E ela respondia, alongada, sorrida, moduladamente: - "Eu... tu... fa-a-zendo". Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?Nada a intimidava. Ouvia o pai querendo que a mãe coasse um café forte, e comentava, se sorrindo: - "Menino pidão... Menino pidão.. ." Costumaira também dirigir-se à mãe desse jeito: - "Menina grande... Menina grande.. ."


Com isso pai e mãe davam de zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: - "Deixa... Deixa.. ." - suasibilíssinia, inábil como uma flor. O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Não se importava com os acontecimentos. Tranqüila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo. Mas, o respeito que tinha por mãe e pai parecia. Mais uma engraçada . Espécie de tolerância. E Nhinhinha gostava de mim.


Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite - "Cheiinhas!" - olhava as estrelas, deléveis, sobre-humanas. Chamava-as de "estrelinhas pia-pia". Repetia: - "Tudo nascendo!" - essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança - "A gente não vê quando o vento se acaba.. ." Estava no quintal, vestídinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: - "Alturas de urubuir.. .' Não, dissera só: - ..... altura de urubu não ir". O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: - "Jabuticaba de vem-me-ver.. ." Suspirava depois:- "Eu quero ir para lá". Aonde? - "Não sei." Ai observou - "O passarinho desapareceu de cantar... De fato, o passarinho tinha estado cantando, e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu disse: - "A avezinha". De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de "Senhora Vizinha..." E tinha respostas mais longas: -"Eeu? Tou fazendo saudade".


Otra hora, falava-se de parentes já mortos, ela riu: - 'Vou visitar eles.. ." Ralhei, dei conselhos, disse que ela estava com a lua. Olhou-me, zombas, seus olhos muito perspectivos: - "Ele te xurugou?" Nunca mais vi Nhinhinha. Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres. Nem mãe nem pai acharam logo a maravilha, repentina. Mas Tiantônia. Parece que foi de manhã. Nhinhínha, só, sentada olhando o nada diante das pessoas:- "Eu queria o sapo vir aqui". Se bem a ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo. Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhínhinha - e não o sapo de papo, mas bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: - "Está trabalhando um feitiço.. ." Os outros se pasmaram; silenciaram demais. Dias depois, com o mesmo sossego: - "Eu queria uma pamonhínha de goíabada.. ." - sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, de longe, que trazia os pãezinhos da goiabada enrolada na palha. Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo.


O que ela queria, que falava, súbito aconteda. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidosas, o que não põe nem quita. Assim, quando a mãe adoeceu de dores, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com que Nhinhinha lhe falasse a cura. Sorria apenas, segredando seu - "Deixa... Deixa.. - não a podiam despersuadir. Mas veio, vagarosa, abraçou a mãe e a beijou, quentinha. A mãe, que a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que ela tinha também outros modos. Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos, gente maldosa e interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina, levá-la para sério convento. Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber. Também, o pai, Tiantônia e a mãe, nem queriam versar conversas, sentiam um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão.


O que ao pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era que de tudo não se tirasse o sensato proveito. Veio a seca, maior, até o brejo ameaçava de se estorricar. Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva.- "Mas, não pode, ué.. ." - ela sacudiu a cabecinha. Instaram-se: que, senão, se acabava tudo, o leite, o arroz, a carne, os doces, frutas, o melado. - "Deixa... Deixa.. ." - se sorria, repousada, chegou a fechar os olhos, ao insistirem, no súbito adormecer das andorinhas. Daí a duas manhãs, quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o vermelho - que era mais um vivo cor-de-rosa. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a refrescação. Fez o que nunca se lhe vira, pular e correr por casa e quintal. - "Adivinhou passarinho verde?"- pai e mãe se perguntavam. Esses, os passarínhos, cantavam, deputados de um reino. Mas houve que, a certo momento, Tiantônia repreendesse a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a mãe e o pai não entenderam aquilo, não gostaram.


E Nhinhinha, branda, tornou a ficar sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com seu passarinho-verde pensamento. Pai e mãe cochichavam, contentes: que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse. E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu.


Diz-se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais.Desabado aquele feito, houve muitas diversas dores, de todos, dos de casa: u de-repente enorme. A mãe, o pai, e Tiantônia davam /conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração de se ver quando a mãe desfiava o terço, mas em vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de - "Menina grande... Menina grande.. ." - com toda ferocidade. E o pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhínha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava. Agora, precisavam de mandar recado, ao arraial, para fazerem o caixão e aprontarem o enterro, com acompanhamento de virgens e anjos. Aí, Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado desatino, por isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes... A agouraria! Agora, era para se encomendar o caixãozinho assim, sua vontade? O pai, em bruscas lágrimas, esbravejou: que não! Ah, que, se consentisse nisso, era como tomar culpa, estar ajudando ainda a Nhinhinha a morrer... A mãe queria, ela começou a discutir com o pai. Mas, no mais choro, se serenou - o sorriso tão bom, tão grande - suspensão num pensamento: que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! - pelo milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha.

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