8 de fevereiro de 2019

Teoria do conto

A primeira teoria do conto


A primeira teoria do conto surgiu nos Estados Unidos, com Edgar Allan Poe, que estabelece “como ingredientes básicos do gênero a intensidade, resultante evidentemente de um bom domínio da brevidade e da unidade, buscando um ‘efeito único’, que seria a verdade”. No que se refere à verdade, esta “seria atingida pelo exercício da razão (do criador e do leitor), a partir da idealização inicial do efeito único a ser atingido, e que para tanto geraria a necessária invenção dos acontecimentos a serem narrados”. (HOHLFELDT, 1988, 17). Esse efeito único deve parecer natural para ser bem aceito pela maioria dos leitores. Além disso, para a obtenção desse efeito, é necessário observar a extensão do conto, pois, segundo Poe, torna-se “‘imprescindível’ (...) a leitura de uma só assentada, para se conseguir esta unidade de efeito” (POE apud GOTLIB, 1988, 32). 

Em relação à extensão do conto e seu tempo de leitura, Poe (apud GOTLIB, 1988,34) ainda continua: “referimo-nos à prosa narrativa curta, que requer de meia hora ou uma ou duas horas de leitura atenta”. Outro teórico que se refere ao espaço ocupado pelo conto é E.M. Forster (início do século XX), dizendo que o conto para ser considerado como tal deve ter até cinquenta mil palavras ou aproximadamente cem páginas. 

Há outros teóricos ainda que tendam a resumir e simplificar a conceituação do gênero. Mario de Andrade é um grande exemplo deles quando diz: “conto é tudo que o autor assim o denomine” (ANDRADE, 1972, 5). Da mesma forma, outros autores, focalizando a atenção para o leitor, afirmam: “conto é tudo aquilo que o leitor assim aceite” (HOHLFELDT, 1988, 15). 

Em relação à fronteira demarcatória entre o conto e outros gêneros há, também, várias tendências. Uma das analogias foi apontada no Realismo, quando o conto se cristalizou em um determinado modelo (o de Guy de Maupassant). Por essa ocasião, foi comparado ao soneto, “em face de sua condensação, do rigor de seu acabamento, da sua unidade e da funcionalidade de desfecho, em razão do qual se organizam as outras partes” (LUCAS,1982:106). Esta relação voltou a ser discutida na literatura moderna, com o surgimento do conto de atmosfera, em que se preocupou mais com o processo da escrita, voltando-se mais para o processo narrativo e menos para um referencial externo. Assim, “o conto se aproximou da expressão poética” (LUCAS,1982:107). 

Contudo, o que os estudiosos buscam incansavelmente é determinar o limite entre o conto e romance. Haja vista que, por pertencerem ambos ao gênero narrativo, faz-se necessário observar algumas semelhanças e diferenças entre eles. Para Fábio Lucas, a distinção entre o conto e romance se dá, inicialmente, pela própria origem. Enquanto o primeiro se filia à narrativa doméstica, à fábula, à anedota, ao caso, ao provérbio e aos enredos curtos, o segundo é considerado um filho remoto da epopeia. Já para Júlio Cortázar (1993), a diferença está na noção de limite. Se por um lado, temos o romance que se desenvolve no papel, ou seja, no tempo de leitura, sem limitações; por outro lado, temos o conto, que parte justamente dessa limitação, principalmente física. O autor vai mais longe, dizendo que enquanto o romance se compara ao cinema, o conto se assemelha à fotografia: 

Na medida em que um filme é em princípio uma “ordem aberta”, romanesca, enquanto que uma fotografia bem realizada pressupõe uma justa limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo que a câmara abrange e pela forma com que o fotografo utiliza esteticamente essa limitação. [...] Enquanto no cinema, como no romance, a captação dessa realidade mais ampla e multiforme é alcançada mediante o desenvolvimento de elementos parciais, [...] o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que seja significativo. (CORTÁZAR, 1993: 151). 
Enquanto o romance acumula progressivamente seus efeitos no leitor, o conto é incisivo, sem tréguas desde os primeiros momentos. Isso porque o “contista sabe que não pode proceder cumulativamente, que não tem o tempo por aliado; seu único recurso é trabalhar em profundidade, verticalmente, seja para cima ou para baixo no espaço literário” (CORTÁZAR, 1993:152). Dessa forma, não encontraremos elementos gratuitos ou decorativos no conto. Essa estética do espaço reduzido do conto, o adequou à era moderna, fazendo-os acompanhar a evolução da imprensa e das publicações periódicas, que visam atender ao público leitor contemporâneo que quer buscar entretenimento e informações às pressas. Ao contrário, o romance não possibilita isso. Para acompanhar esse processo de modernização e não ser esquecido frente à correria diária, o romance teve que ser subdividido em capítulos ou até em pequenos contos. 

Diante dessas especificidades do conto, é necessário estar atento a três elementos apontados por Cortázar como essenciais na construção dessa narrativa curta e muito densa. O primeiro deles é a escolha do tema e o trabalho feito com ele pelo autor. O tema deve ir além dele mesmo, de forma a transformar um fato corriqueiro “no resumo implacável de certa condição humana, ou no símbolo candente de uma ordem social ou histórica” (CORTÁZAR, 1993:153). Não há, portanto, tema bom ou ruim. O que importa é o tratamento literário realizado com esse tema e as técnicas empregadas para desenvolvê-lo. 

O segundo elemento destacado pelo autor é a intensidade do conto, ou seja, a eliminação de tudo que não seja essencial para o drama, “de todas as ideias ou situações intermédias, de todos os recheios ou fases de transição que o romance permite e mesmo exige” (CORTÁZAR, 1993:157). 

E, por fim, o que Cortázar denominou tensão, que se refere à atmosfera em que o leitor se envolve durante a leitura, é “uma intensidade que se exerce na maneira pela qual o autor nos vai aproximando lentamente do que conta” (CORTÁZAR,1993:158), prendendo nossa atenção até o fim da narrativa. 

Há entre os contos uma infinidade de temas e espécies de registro. Em relação ao primeiro, ele pode ser: urbano ou rural; regional ou universal; psicológico ou social. No que se refere ao segundo, temos: realista documental, realista crítico, intimista na esfera do eu (memorialista), fantástico, experimental no nível do trabalho linguístico. 

Em se tratando especificamente do conto contemporâneo nota-se que este acompanha as mudanças da era moderna capitalista. 

O homem, com seus limites e apreensões, em sua luta diária perante as sociedades esmagadoras, e até suas pequenas vitórias cotidianas é o retrato do final do século XX e início do século XXI. E é a esse retrato que se refere o conto atual. Não há mais uma preocupação como tinha o humanismo liberal, com grandes feitos e soluções; Hoje, o conto está centralizado nos pequenos (ou grandes) problemas individuais, que nem sempre têm soluções, como é também na realidade. Para tanto, o conto se utiliza de todos os artifícios da modernidade. Assim, como imagens televisivas dos meios de comunicação, o conto vai traçando o retrato da sociedade contemporânea. Luiz Carlos Simon (1999) comenta essas peculiaridades da ficção pós-moderna e diz que o conto possui três aspectos básicos: fragmentação, velocidade e intensidade. 

O primeiro se refere a frases desconexas, falta de linearidade e superposição de ideias, sempre escolhidas pelo contista a fim de gerar um efeito jamais conseguido se baseado na integridade e na sequência. Segundo o autor, essa escolha pelo fragmento é igualmente um reflexo da sociedade atual, em que a fragmentação, o caso é visível e fortemente presente. 

As referências ao efêmero e ao frágil, às vozes e aos momentos alimentam a afinidade entre o conto e a fragmentação. Agora, além da intencionalidade do recorte e da natureza lírica emanada da fixação em um momento, pode-se começar a confirmação de que o caráter fragmentário transcende a estrutura do conto e caracteriza também o mundo aí representado igualmente fragmentado (SIMON, 1999: 67). 

Percebe-se, então, que numa sociedade baseada no recorte individual, nos problemas de ordem particular e fragmentária, a ficção não poderia deixar de ser semelhante. A preferência por tais temas é explícita no conto contemporâneo, o sujeito aqui enfocado não é mais do centro – como observa Linda Hutcheon – e sim o das margens, seja de ordem sexual, étnica, econômica ou social. Encontrar, por exemplo, um protagonista num conto sem um nome, que não consegue ultrapassar seus obstáculos ou resolver seus problemas, é muito comum nos contos em que o leitor se depara atualmente. A coletividade foi substituída pelas pequenas preocupações individuais. Esse personagem anônimo dentro da ficção contemporânea também foi observado por Fredric Jameson (1994) como marca presente e muito representativa. 

Dessa forma, o autor dá preferência a personagens carentes de identificação, apresentando, muitas vezes, histórias de seres (a maioria sem nome ou qualquer outro traço que o individualize), que representam tipos genéricos, modelos de ação e comportamento, em vez de personalidades cuja intimidade e psicologia são vasculhadas pelo escritor. 

O segundo aspecto atribuído ao conto contemporâneo é a velocidade. Este, que já fora observado por Tchekov com uma supressão de detalhes e por Poe no que se refere à duração do tempo de leitura e sua relação com a unidade do efeito. Hoje, porém, a velocidade é muito mais marcante na vida cotidiana, pois o homem contemporâneo dispõe de pouco tempo para estar informado, se entreter ou manter-se em contato com a arte. Em se tratando do conto, é possível perceber que este segue essa tendência, atualizando o conceito de velocidade. As obras são cada vez mais sintéticas e objetivas, com uma linguagem mais voltada para o leitor moderno. A intensidade é a terceira característica atribuída ao conto contemporâneo. Novamente, concebida, hoje, de forma diferente do que fora anteriormente. O conceito não corresponde mais “à ideia de um aprofundamento crítico e reflexivo” (SIMON, 1999: 75), mas está ligado ao que Linda Hutcheon (1995:19) chama de “retórica negativizada”, ou seja, “descontinuidade, desmembramento, deslocamento, descentralização, indeterminação e antitotalização”. Esses termos, sempre antecedidos por prefixos de negação, são usados pela ficção contemporânea para negar o compromisso, ou ainda “incorporar aquilo que pretende contestar” (HUTCHEON,1995:19). 

Contudo, em relação a essa controvérsia entre o antigo conceito do termo, o que fica de similar, entre a teoria antiga e a contemporânea, é a ideia de Tchekhov, quando diz que o contista, ao retirar detalhes, realiza uma obra compacta e atinge a intensidade. Isso acontecia com o conto tradicional e acontece na ficção contemporânea, com a ideia de descontinuidade, levantada por Hutcheon. 

Para Ricardo Piglia, a característica básica tanto do conto clássico, quanto do contemporâneo é o caráter duplo da sua forma, ou seja, o que torna o conto diferente em relação a outros gêneros é a duplicidade de histórias. Assim, pode-se dizer que todo conto narra duas histórias: uma explícita e uma secreta. 

No conto tradicional, a primeira história é narrada e se constrói em segredo a segunda. “Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de um modo elíptico e fragmentado” (PIGLIA, 2004:90). Ao final da história, produz-se o efeito surpresa, quando a história secreta é revelada. Já no conto contemporâneo, há um abandono do efeito surpresa e da estrutura fechada. O contista “trabalha a tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê-la. A história secreta é contada de um modo cada vez mais elusivo” (PIGLIA, 2004:91). Enquanto no conto clássico, uma história anunciava que havia outra, aqui as duas são contadas como se fosse uma só. 

Frente a essa imensa variedade temática e estrutural, pode-se dizer que o conto é o modelo da ficção contemporânea. Além, é claro, de apresentar, em seus temas, situações vividas pelo homem contemporâneo numa forma de registro rápido e sintético escrito para esse homem que, além de estar em contato com assuntos corriqueiros, do dia a dia, presentes na literatura, é capaz de lê-los com maior rapidez, assim como exige sua vida moderna e caoticamente agitada.


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