7 de fevereiro de 2019

Texto | Os Gatos de Ulthar

OS GATOS DE ULTHAR
 Por H. P. Lovecraft (1890-1937)

Diz-se que em Ulthar, que se situa além do rio Skai, nenhum homem pode matar um gato; creio nisto ao olhar o que se senta, a ronronar, diante do fogo. Porque o gato é enigmático, íntimo das coisas estranhas que os homens não podem ver. Ele é a alma do antigo Aegyptus e conhecedor das histórias das cidades esquecidas de Moroë e Ophir. Ele é parente dos senhores da selva e herdeiro dos segredos da antiga e sinistra África. A Esfinge é sua prima e ele fala sem seu idioma. Mas ele é mais antigo que a Esfinge e se recorda de coisas que ela já se esqueceu.

Em Ulthar, antes que os cidadãos proibissem a matança de gatos, viviam um velho camponês e sua mulher, que se divertiam capturando e matando os gatos dos vizinhos. Por que eles faziam isso, eu não sei; todavia, há muitas pessoas que odeiam a voz noturna dos gatos e se incomodam com suas correrias furtivas por pátios e jardins no crepúsculo. Mas seja qual for a razão, esse homem velho e sua mulher se deleitavam com a captura e morte de todos os gatos que se acercavam de sua cabana; e, pelos gritos que eram ouvidos depois do anoitecer, vários aldeães imaginavam que a maneira de matá-los era extremamente peculiar. Mas os aldeães não discutiam sobre estas coisas com o velho e sua mulher; seja por causa da expressão habitual de seus rostos encarquilhados, seja porque a cabana era minúscula e tenebrosamente escondida sob os carvalhos que se espraiavam na parte de trás de uma chácara arruinada. Na verdade, por mais que os donos dos gatos odiassem essas pessoas estranhas, temiam-nas ainda mais; e, em vez de puni-los como brutais assassinos, somente se acautelavam para que nenhum mascote querido, ou hábil caçador de ratos, se desviasse em direção à cabana escondida sob as árvores sombrias. Quando por algum inevitável descuido algum gato sumia, e ouviam-se alaridos depois do anoitecer, àquele que perdera o animal restava apenas o lamento impotente; ou o consolo de agradecer à Sorte por não haver sido um de seus filhos quem desaparecera. Pois o povo de Ulthar era simples, e desconhecia a origem dos gatos primevos.

Certo dia, uma caravana de estranhos peregrinos, procedida do Sul, entrou nas ruas estreitas e pavimentadas de Ulthar. Aqueles peregrinos eram escuros, diferentes de outros povos andarilhos que passava pela aldeia duas vezes por ano. Nos mercados, vaticinavam a sorte em troca de prata, e compravam contas coloridas dos mercadores. Qual era a terra natal desses peregrinos, ninguém saberia dizê-lo; mas via-se que eram dados a estranhas e extravagantes orações, e que as laterais de seus vagões eram pintadas com esquisitas figuras de corpos humanos com cabeças de gatos, falcões, carneiros e leões. E o líder da caravana usava um toucado com dois cornos e um curioso disco entre eles.

Havia nessa singular caravana um menino sem pai nem mãe, com um gatinho preto para acalentar. A praga não havia sido generosa com ele, mas lhe havia deixado a coisinha peluda para mitigar a sua dor; e quando se é muito jovem, encontra-se um grande alívio nas animadas travessuras de um gatinho preto. Dessa maneira, o menino, a quem o povo escuro chamava de Menes, sorria mais que chorava, a brincar com o seu gatinho gracioso, sentado nos degraus do vagão estranhamente pintado.

Certo dia, durante a terceira semana de estadia dos viajantes em Ulthar, Menes não conseguiu achar o seu gatinho; e, quando chorava alto no mercado, alguns aldeães contaram-lhe a história do homem velho e sua mulher e dos ruídos escutados à noite. Ao ouvir essas coisas, seu pranto deu lugar à meditação e, finalmente, à oração. Ele estendeu os braços para o alto, em direção ao Sol e rezou em um idioma que nenhum dos aldeães pôde compreender, embora, em verdade, estes não se esforçassem muito em fazê-lo, pois as suas atenções foram absorvidas pelo céu e pelas estanhas formas que as nuvens assumiam. Isto era muito estranho, pois, enquanto o garotinho pronunciava a sua súplica, pareciam formar-se no firmamento figuras sombrias e nebulosas de coisas exóticas; de criaturas híbridas coroadas com discos ladeados de cornos. A natureza é repleta de ilusões tais que impressionam as pessoas imaginativas.

Naquela noite, os peregrinos deixaram Ulthar e jamais foram vistos novamente. E os chefes de família ficaram preocupados quando notaram que em toda a aldeia não havia um só gato. De cada lar, o gato de família havia desparecido: gatos pequenos e grandes, cinza, pretos, rajados, amarelos e brancos. O velho Kranon, burgomestre, jurou que os viandantes escuros haviam levado consigo todos os gatos, como vingança pela morte do gatinho de Menes, e amaldiçoou a caravana e o menino. Mas Nith, o magro escrivão, declarou que o velho camponês e sua esposa eram os maiores suspeitos, porquanto o seu ódio por gatos era famoso e cada vez mais ousado. Ainda assim, ninguém ousou queixar-se ao sinistro casal; nem mesmo quando Atal, o filho do 2 estalajadeiro, jurou que havia visto todos os gatos de Ulthar ao entardecer, no quintal maldito sob as árvores. Eles caminhavam em círculos, solene e lentamente, ao redor da cabana, aos pares, como se realizassem algum inaudito rito bestial. Os aldeães não sabiam até onde poderiam acreditar num garoto tão pequeno; e, malgrado temessem que o maldito casal houvesse levado os gatos à morte, preferiam não confrontar o velho camponês até que este fosse encontrado fora de seu sítio repulsivo e sombrio.

Deste modo, a aldeia de Ulthar dormiu envolta por um ódio inútil. E quando as pessoas acordaram, ao amanhecer – vejam isto! –, todos os gatos estavam de volta ao costumeiro lar. Grandes e pequenos, cinza, pretos, rajados, amarelos e brancos, nenhum deles estava faltando. Voltaram gordos e muito luzidios, ronronando de satisfação. Os cidadãos comentavam entre si o acontecimento e não pouco se maravilhavam dele. O velho Kranon novamente insistia em que o povo escuro os havia levado, já que gato algum voltava com vida da casa do velho homem e sua esposa. Mas todos estavam de acordo em um ponto: que a recusa de todos os gatos de comer a sua ração de carne ou de beber em seus pratinhos de leite era extremamente curiosa. E, por dois dias inteiros, os gatos de Ulthar, lustrosos e preguiçosos, não tocaram na comida, ficando apenas deitados junto ao fogo ou sob o Sol.

Uma semana se passou até que os aldeães notassem que, na cabana sob as árvores, ao entardecer, as luzes não brilhavam através das janelas. Depois, o magro Nith observou que ninguém tinha visto o velho ou a sua mulher desde o dia em que os gatos sumiram. Na semana seguinte, o burgomestre resolveu superar os seus temores e bateu à porta da estranhamente silenciosa cabana, em cumprimento ao seu dever de ofício, mas tendo o cuidado de levar consigo, como testemunhas, o ferreiro Shang e o cortador de pedras Thull. E quando derrubaram a frágil porta, encontram apenas isto: dois esqueletos humanos, limpos, completamente descarnados, sobre o chão de terra, e uma porção de singulares besouros rastejando pelos cantos escuros da cabana.

 Posteriormente, houve muito falatório entre os cidadãos de Ulthar. Zath, o magistrado, discutiu longamente com Nith, o magro escrivão; e assediaram Kranon e Shang e Thul com perguntas. Até mesmo o pequeno Atal, o filho do estalajadeiro, foi minuciosamente interrogado e, como recompensa, ganhara confeitos. Falava-se do velho camponês e sua esposa, da caravana de peregrinos escuros, do pequeno Menes e seu gato preto, da oração de Menes e do céu misterioso durante a prece, das proezas dos gatos na noite em que partiu a caravana, e do que foi encontrado na cabana sob as árvores, naquele sítio repugnante.

 E, no final, os cidadãos aprovaram aquela extraordinária lei, a que é contada pelos mercadores Hetheg e discutida por viajantes em Nir: a de que em Ulthar nenhum homem poderá jamais matar um gato.

Versão em português por Paulo Soriano Retirado de: http://www.contosdeterror.com.br/index.php/contos-classicos/465-os-gatos-de-ulthar.html


0 comentários: